Azulejista

A fala dos livros

Os livros estão empilhados

Os livros estão empilhados. As lombadas me olham, me desafiam. Estou sentada na mesa alta, à altura da janela. As páginas da Hannah são preto e branco. Coloquei a câmera diante de mim, e apinhando-a sobre os livros acionei tiradas automáticas para fotografar. Os livros me olham e desafiam a partir de sua corporeidade distinta. Não aprendo por vê-los nas suas formas externas. São detalhamentos, são pequenos índices de grandes mundos. Da espessura densa dos livros inteiros, vazam entre eles as cópias irregulares que compartimentam suas totalidades – fotocópias são pormenores. Há também impressos da internet. Artigos que chegaram ontem por e-mail. Outros manuscritos entre os cadernos. Manuscritos meus e resenhas infindas de outros textos. E textos revisados rascunhados sobre a mesma mesa.

Extraio toda imagem da materialidade própria aos livros, textos, manuscritos. Extraio toda imagem (foto?), quando há. Não há nada que se apreenda pela espessura das linhas, ou pela escuridão da tinta que fecha as letras. Retiro as letras, a sonoridade das palavras pronunciadas, à procura de uma outra coisa que seja sua base, seu concreto armado. Espécie de zoom.

Há uma certa latência necessária na relação com os escritos. Certa vez ao entrar em uma livraria – naquelas à moda antiga, que têm os livros até o teto de altíssimo pé direito – fui percebendo a presença dos autores. Fui percebendo as barbas, as falas, as línguas diferentes, os desafiadores entre si, os acadêmicos atrás da mesa. Fim do dejá vu. A latência é uma soma de tempo e envolvimento. No atelier/escritório detenho-me por temporalidades distintas com cada qualidade de texto. Refaço-os por aproximação ao que me parece familiar. Anoto o que é estranho e interessante colando os bilhetes de papel na parede ao lado. A latência expande a casa. Ao atravessar a rua acontecem atropelamentos de pensamento. Entre uma faixa branca e outra inscrevem-se palavras. Novos sentidos.

Percebo-me falando em palavras (outrora falara também em imagens). Já não sou cadáver, que quando fala, escreve. Já pensei muito sobre o conflito de tempos entre a escrita e o pensamento vivo. Nada resolvido, mas sem embater ou contrariar mantenho-me em posição ereta, diante da tela (nova materialidade), há sentidos pré-arquivados.

Que é que me passam nessa tradição de escrita e leitura os produtores dessas palavras empilhadas? Se são conhecimentos, se são saberes, por que meio de (i)materialidade gravam-se em mim? Há aqueles que vêm e vão. Preocupo-me se não há de existir um tipo que fique. Alguma coisa que por espécie de acomodação e adequação encontre [ ].

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A fala dos livros

Ela está sentada na mesa. Vemos do outro sentido (sul-norte) sua fronte um pouco tensa. Usa óculos de aros azuis meio embaçados pendidos sobre o nariz. Lentes de atravessamento, que refletem as letrinhas pequenas de uma de nós aberta diante da leitora. Acumulam-se seus músculos na porção entre as sobrancelhas. Entre uma inspiração e outra, o rangido do lápis roça a superfície minuciosamente irregular do papel. Ouvimos um novo ruído do grafite que risca as linhas e desenha círculos nas palavras. Estamos empilhados numa topografia singular: aqueles menos usados ficam entre nós, os mais usados têm lápis entre esgarçando as amarrações das lombadas, têm anotações e marcadores. Os mais usados ficam em cima das pilhas e os bem menos folheados são massacrados pelo peso das folhas empilhadas dos demais.

Entre uma inspiração e outra ela folheia depois agrupa e desagrupa uns sobre os outros. Costura papéis. Mas demora a compreender a materialidade das escritas.


A fala dos livros

Os livros estão empilhados

Cristina Ribas

2007

Rio de Janeiro

(estes textos são acompanhados por oito fotografias)

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